Do trabalho (uma introdução histórica-filosófica)  


Um olhar para a literatura historiográfica e ficcional de todas as épocas faz-nos conhecer a realidade de pessoas que se dedicavam a atividades que,  se formos sinceros conosco, não teremos dúvida em chamar de trabalho (e trabalho duro em alguns casos) e que,  no entanto,  não ganhavam nada de dinheiro pelo que faziam.  


Não me refiro só ao dinheiro no sentido estrito da palavra.   Na Idade Média o servo da gleba podia ser alguém que ganhava pelo seu trabalho apenas o direito de continuar morando (ele e sua família) no mesmo local e de ser protegido pelo senhor local (1).  


       (servos da gleba trabalhando.  Imagem tirada do site da agência de notícias Gaudium Press)

                


 Podia ser alguém que não ganhava nada de dinheiro vendendo o produto do seu trabalho.  Apenas esse exemplo já nos mostra claramente que é contrária à verdade a ideia de que trabalhar é o mesmo que ganhar dinheiro.  Podemos citar ainda o caso dos frades franciscanos e das monjas ou freiras clarissas cuja regra de vida,  que proíbe até tocar em dinheiro,  obriga, no entanto,  os religiosos (as) saudáveis a trabalharem para o bem de todos (2).     


 O que é então trabalhar?  


Tanto aquele que ganha dinheiro pelo seu trabalho como aquele que não ganha trabalhando colabora para o bem comum,  para que bens absolutamente ou relativamente necessários, e também bens valiosos, estejam disponíveis para todos.  


Bens absolutamente necessários são, em primeiro lugar, os necessários para a alma dos quais o primeiríssimo é o conhecimento da verdade,  do qual depende o conhecimento do que é bom e do que é mau e do que é belo e do que é feio.   Para a disposição desse bem contribuem principalmente os professores, cuja atividade é diretamente ligada às chamadas 7 artes liberais: gramática,  retórica, lógica, aritmética,  música, geometria e astronomia (ou ciências da natureza).    


Em segundo lugar temos os bens necessários para o corpo.  Alguns desses são absolutamente necessários porque sempre foram necessários,  em todas as épocas e lugares,  desde a origem do Homem.  Outros tornaram-se necessários.  Para a disposição desses bens trabalham os profissionais das diversas artes antigamente chamadas de mecânicas (3): agricultura,  alfaiataria, arquitetura,  artes militares, , carpintaria,  comércio,  culinária,  gastronomia, medicina etc     


Por fim temos os bens valiosos,  alguns dos quais são para a alma e outros para o corpo.   Para a disposição comum desses bens trabalham os profissionais das belas-artes,  no sentido amplo desse termo,  e do desporto (esporte).  E pode acontecer que alguma das belas-artes ou algum esporte seja relativamente necessário.  Assim,  por exemplo,  entre os antigos gregos,  o teatro era uma necessidade sociológica (4),  e a prática de algum esporte é necessário para alguns doentes.     


             Enfim,  o trabalho é o esforço de colaborar para a disposição comum de bens,  sejam esses necessários ou valiosos,  sejam absolutamente necessários ou relativamente,  sejam valiosos para a alma ou para o corpo,  independente de ganho monetário e financeiro.   Porque o ser humano é o animal racional,  essa colaboração só é trabalho humano se é consciente e proposital.  Trabalhar como um animal significa trabalhar sem ter consciência de estar trabalhando para o bem comum.    


Notas


  1. A historiadora francesa Régine Pernoud fez a seguinte esclarecedora comparação entre o sistema moderno de trabalho e o sistema feudal: 


 “Pode-se dizer que a sociedade atual está fundada sobre o salariado. No plano econômico, as relações de homem para homem ligam-se às relações do capital e do trabalho. Realizar um determinado trabalho, receber em troca uma determinada soma, tal é o esquema das relações sociais. O dinheiro é o seu nervo essencial, já que, salvo raras exceções, uma atividade determinada se transforma primeiro em numerário antes de mudar de novo para quaisquer dos objetos necessários à vida.

        Para compreender a Idade Média, temos de nos representar uma sociedade que vive de modo totalmente diferente, da qual a noção de trabalho assalariado, e mesmo em parte a de dinheiro, estão ausentes ou são muito secundárias. O fundamento das relações de homem para homem é a dupla noção de fidelidade, por um lado, e por outro a de proteção. Assegura-se devoção a qualquer pessoa, e dela espera-se em troca a segurança. Não se compromete a atividade em função de um trabalho preciso, de uma remuneração fixa, mas a própria pessoa, ou melhor, a sua fé, e em troca se requer subsistência e proteção, em todos os sentidos da palavra. Tal é a essência do vínculo feudal.” (Régine Pernoud,  Luz da Idade Média,  cap 2: O vínculo feudal.  Para uma leitura comparativa sugiro o livro “A sociedade feudal” de Marc Bloch. ).   

  1.   A segunda Regra de São Francisco,  de 1221(Regra aprovada pela Santa Sé de Roma) no capítulo 4, diz: 


Mando firmemente a todos os frades que de nenhum modo recebam dinheiro ou pecúnia por si ou por intermediário. Mas, para as necessidades dos enfermos e para vestir os outros frades, os ministros apenas e os custódios, por meio de amigos espirituais, tenham solícito cuidado, segundo os lugares e tempos e frias regiões, como lhes parecer servir à necessidade; sempre salvo, como foi dito, que não recebam dinheiro ou pecúnia.” 


Porém mais adiante no capítulo seguinte está dito:


“ Os frades a quem o Senhor deu a graça de trabalhar, trabalhem fiel e devotamente, de modo que, afastando o ócio inimigo da alma, não extingam o espírito da santa oração e devoção, ao qual as outras coisas temporais devem servir. Como mercê do trabalho recebam para si e seus irmãos o necessário para o corpo, menos dinheiro ou pecúnia, e isso humildemente, como convém a servos de Deus e seguidores da santíssima pobreza.”


O que mostra claramente a realidade do trabalho sem ganho monetário (nesse caso abraçada livremente pelos frades franciscanos ou frades menores).  


O mesmo se pode dizer da Regra das Irmãs Clarissas (Regra de Santa Clara):


Final do capítulo  6:


“E como eu sempre fui solícita com minhas Irmãs, na observância da santa pobreza que ao Senhor Deus e ao bem-aventurado Francisco prometemos guardar, assim sejam obrigadas as abadessas que me sucederem no cargo e todas as Irmãs a observá-la inviolavelmente até o fim: isto é, a não aceitar nem ter posse ou propriedade nem por si, nem por pessoa intermediária, e nem coisa alguma que possa com razão ser chamada de propriedade, exceto aquele tanto de terra requerido pela necessidade para o bem e o afastamento do mosteiro. E essa terra não será trabalhada a não ser para a horta e a necessidade delas.”


Capítulo 7: 


 “As Irmãs a quem o Senhor deu a graça de trabalhar trabalhem com fidelidade e devoção, depois da hora de Terça, em um trabalho que seja conveniente à honestidade e ao bem comum, de modo que, afastando o ócio, inimigo da alma, não extingam o espírito da santa oração e devoção, ao qual as outras coisas temporais devem servir.

 

A abadessa ou a vigária devem indicar em capítulo, diante de todas, o que cada uma deverá fazer com as próprias mãos. O mesmo se faça se alguém enviar alguma esmola para as necessidades das Irmãs, para que pelo bem dessas pessoas se faça uma recomendação em comum. E todas essas coisas sejam distribuídas pela abadessa ou por sua vigária, com o conselho das discretas, para a utilidade comum.”


Capítulo 8 


“ As Irmãs não se apropriem de nada, nem casa, nem lugar, nem coisa alguma. E como peregrinas e forasteiras neste mundo, servindo ao Senhor na pobreza e na humildade, mandem pedir esmola confiadamente, e não precisam ficar com vergonha, porque o Senhor se fez pobre por nós neste mundo. Esta é a sublimidade da altíssima pobreza que vos fez, minhas caríssimas Irmãs, herdeiras e rainhas do reino dos céus, pobres em coisas, mas sublimadas em virtudes. Seja esta a vossa porção, que vos conduz à terra dos vivos. Aderindo totalmente a ela, queridas Irmãs, nada mais queirais possuir em perpétuo abaixo do céu, pelo nome de nosso Senhor Jesus Cristo e de sua santíssima Mãe.”


  1.     O termo arte mecânica aparece numa obra do século IX intitulada “O casamento da Filologia com Mercúrio”,  de autoria de João Escoto Erígena (815-877) e na qual a filologia é personificada tratando-se, portanto, de uma obra alegórica.   Aparece depois numa obra do século XII de autoria de Hugo de São Vitor (1096-1141) intitulada Didascalicon (Ensinamento),  que pode ser lida no site da Bibliotheca Augustana: https://www.hs-augsburg.de/~harsch/Chronologia/Lspost12/Hugo/hug_did0.html  


  1.   A função sociológica do teatro na Grécia Antiga pode ser induzida por comparação a partir da arquitetura dos lugares teatrais,  a qual lembra os nossos estádios de futebol.  Também pode ser induzida dos temas das tragédias e das comédias,  nas quais eram relembradas acontecimentos que deram origem a comunidades e cidades e por causa das quais as comunidades e cidades existiam e também acontecimentos recentes ou situações do momento.  Enfim também pode ser induzida da leitura do tratado de literatura de Aristóteles (384-322 a.C) intitulado “Poética”  



                              (ruínas de um teatro grego.  Imagem colhida no Google imagens) 

                 



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